Umberto Eco
"Deus se nos manifesta de fato mais naquilo que não é do que naquilo que é, e por isso as similitudes das coisas que mais se distanciam de Deus nos conduzem a uma opinião mais exata sobre Ele, para que saibamos assim que Ele está acima do que dizemos e pensamos."
Eco nasceu em Alessandria, na Itália, em 5 de janeiro de 1932. Completa hoje 80 anos, ao longo dos quais construiu uma sólida carreira como professor de semiótica na Universidade de Bolonha.
Ensaísta de renome mundial, dedicou-se a temas como estética, semiótica, filosofia da linguagem, teoria da literatura e da arte e sociologia da cultura. Autor de artigos de opinião nos jornais Espresso e La Repubblica, estreou como romancista com O Nome da Rosa, em 1980. Esse primeiro texto gozou grande sucesso em todo o mundo, sendo adaptado para o cinema em 1986. Em 1988, escreve O Pêndulo de Foucault, A Ilha do Dia Anterior surge em 1994; Baudolino, em 2000; A misteriosa chama da rainha Loana, de 2004; e O Cemitério de Praga, de 2011. Além da literatura, destaca-se também pelos textos ensaísticos, como Obra Aberta, de 1962; Apocalípticos e Integrados, de 1964; A Estrutura Ausente, de 1968; As Formas do Conteúdo, de 1971; Tratado Geral de Semiótica, de 1975; Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, de 1994; Sobre a Literatura, de 2003; Quase a mesma coisa, de 2004; História da Beleza, de 2004; História da Feiúra, de 2005; entre outros. Escreveu ainda alguns textos jornalísticos, que estão reunidos em Diário Mínimo, de 1983; O Segundo Diário Mínimo, de 1990; e A Coruja de Minerva, de 2000.
Um traço marcante na obra de Eco é o pensamento filosófico. Os questionamentos que surgem ao longo de suas obras, mais que impelir a uma busca de respostas, nos leva a mais e mais questões, dúvidas que se empilham diante de nossos olhos gerando ainda mais dúvidas. A leitura de Eco não está na superfície límpida do lago, mas nas turvas profundezas do rio.
"Lamentamos comunicar-lhe que seu livro..."
ANÔNIMO
A BíBLIA
Devo confessar que quando comecei a ler os originais, e durante as primeiras páginas, senti-me entusiasmado. Ali há ação pura e tudo o mais que o leitor de hoje exige de uma obra de evasão: sexo (muitíssimo), com adultério, sodomia, homicídio, incesto, guerras, etc.
O episódio de Sodoma e Gomorra, com os travestis que pretendem violar os anjos, é digno de Rabelais; as histórias de Noé são o mais puro Emilio Salgari; a fuga do Egito é uma história que, mais cedo ou mais tarde, acabará sendo filmada... Em resumo, trata-se do verdadeiro roman-fleuve bem estruturado, que não economiza efeitos, pleno de imaginação com aquela dose de messianismo que agrada, sem chegar ao trágico.
Mais adiante, no entanto, percebi que se trata, na verdade, de uma antologia de vários autores, com muitos, excessivos, trechos do poesia, alguns francamente lamentáveis e aborrecidos, choradeira sem pé nem cabeça.
O resultado é um feto monstruoso que corre o risco de não agradar a ninguém, porque tem de tudo. Além disso, será cansativo estabelecer a questão dos direitos de tão diferentes autores, a menos que o representante de todos eles se encarregue da tarefa. Mas nem no índice encontrei o nome desse representante, como se houvesse da parte dos autores interesse em manter seu nome oculto.
Talvez fosse possível publicar separadamente os primeiros cinco livros. Aí estaríamos pisando em terreno firme. Com o título: Os Desesperados do Mar Vermelho.
HOMERO
A ODISSÉIA
Pessoalmente, o livro me agrada. A história tem beleza, é apaixonante, cheia de aventuras. Tem a dose exata de amor, fidelidade e de escapadas adulterinas (muito boa a figura de Calipso, uma típica devoradora de homens); tem, inclusive, um momento "lolítico", na melhor linha nabokoviana, com uma ninfeta chamada Nausicaa: no episódio, o autor se permite algumas ousadias, mas em momento nenhum incorre em excessos. O conjunto é excitante. As cenas merecem figurar ao lado das melhores já produzidas no gênero western: a luta é violenta, a cena do arco explora, até as últimas possibilidades, o potencial literário de suspense.
Que mais poderia dizer? Leio essa de um sopro, melhor que o primeiro livro do autor, excessivamente estático em sua insistência de permanecer no mesmo lugar, cansativo pela exuberância de acontecimentos (na terceira batalha e no décimo duelo, o leitor já entendeu todo o mecanismo). Ademais, a história de Aquiles e Patrocio, com seu fio latente de homossexualidade, nos transmite um certo desagrado. Ao contrário, neste segundo livro, tudo caminha maravilhosamente; até o tom é mais sereno: pensado mas não reflexivo. Depois, a montagem, o jogo de flash-backs, o encadeamento das histórias! Em suma, muita categoria. De fato, esse Homero tem talento.
Talento demais, seria o caso de dizer... Chego a me perguntar se tudo ali será farinha do mesmo saco. Sabe-se como é: escrevendo, escrevendo, a gente melhora (quem sabe se o terceiro livro será um estouro). Mas o que me faz vacilar (e, afinal, me leva a opinar negativamente) é a confusão que pode resultar da questão de direitos.
Antes de tudo, é impossível localizar o autor. Os que o conhecem dizem que, de toda maneira, seria inútil discutir com ele as pequenas modificações que deviam ser introduzidas no texto, pois é cego como uma toupeira e, em mais de uma ocasião, deu provas de ser incapaz sequer de escrever. Dizem que tinha seus originais na memória, mas que não estava muito seguro do que havia escrito, alegando que o copista havia introduzido interpolações na obra. Terá ele sido o autor ou apenas um testa-de-ferro?
DANTE
A DIVINA COMÉDIA
O trabalho de Alighieri, embora de um típico escritor de fim de semana que, na vida sindical, está filiado ao órgão de classe dos farmacêuticos, demonstra indubitavelmente, certo talento técnico e notável "alento" narrativo. A obra (em florentino vulgar) compõe-se de quase 100 cantos em tercetos rimados e se constitui em leitura agradável e interessante. Gosto, principalmente. de suas descrições de astronomia e certos juízos concisos e densos, que faz com frequência, sobre teologia. Mais inteligível e popular é a terceira parte do livro, que diz respeito a assuntos mais do gosto da maioria, e que concernem aos interesses cotidianos do possível leitor (assuntos tais como a salvação, a visão beatificada, a devoção à Virgem Maria). Obscura e caprichosa é a primeira parte, com passagens de baixo erotismo, violência e trechos francamente grosseiros. Esta é uma das poucas contra-indicações para superar esse primeiro "canto", o qual, quanto à criatividade, não diz mais do que já foi dito por milhares de manuais sobre o outro mundo.
DIDEROT
A RELIGIOSA
Confesso que não cheguei a folhear os manuscritos, mas acredito que um crítico deve saber, até de olhos fechados, o que deve e o que não deve ler. Conheço esse Diderot: redige enciclopédias e agora tem em mãos um projeto de obra em não sei quantos volumes, que provavelmente jamais será editada. Anda por toda parte procurando desenhistas capazes de copiar o mecanismo de um relógio, ou as minúcias de uma tapeçaria de Gobelin, e levará à falência seu editor. Não creio que se trate do homem indicado para escrever algo divertido numa narrativa, especialmente para uma coleção como a nossa, na qual sempre incluímos coisas delicadas, um pouquinho picantes, como Restif de la Bretonne.
SADE
JUSTlNE
O manuscrito estava em meio a um monte de coisas que eu devia ver esta semana, e, para ser sincero, não o li todo. Limitei-me a abri-lo três vezes, ao acaso, em três lugares diferentes, e vocês sabem que para um olho experimentado isso é mais que o bastante.
Bem, da primeira vez encontrei uma avalanche de páginas de filosofia da natureza com divagações sobre a crueldade e a luta pela sobrevivência, sobre a reprodução dos vegetais e a evolução das espécies animais. Da segunda vez, deparei com pelo menos 15 páginas sobre o conceito de prazer, sobre os sentidos e a imaginação, e mais coisas desse gênero. Da terceira vez, outras 20 páginas sobre as relações de submissão entre o homem e a mulher, nos diferentes países do mundo... Acho que isso basta. Não estamos procurando uma obra de filosofia; o público, hoje, quer sexo e mais sexo. Não importa a maneira como ele venha temperado.
CERVANTES
DOM QUIXOTE
O livro, nem sempre inteligível, é a história de um gentil homem espanhol e de seu criado, os quais vão pelo mundo perseguindo sonhos de cavalaria. Esse Dom Quixote é um tanto louco (sua figura é magnificamente concebida: de fato, Cervantes sabe narrar), enquanto seu criado é um simplório (dotado de certo e rude bom senso), com o qual o leitor logo se identifica, quando ele procura desmistificar as fantasias de seu amo. Até aqui o argumento, que se desdobra com alguns bons efeitos e com frequentes episódios divertidos, parece bem. Mas a observação que quero fazer vai além de um juízo pessoal sobre a obra.
Em nossa bem sucedida coleção econômica Os Fatos da Vida, publicamos, com êxito notável, obras como Amadis de Gaula, A Lenda do Graal, O Romance de Tristão, etc. Agora temos opção de editar Reis da França, do mocinho de Barberino, livro que para mim será o grande êxito do ano. Pois bem, se nos decidirmos por Cervantes, poremos em circulação um livro que, não obstante ser muito bem feito, atirará no lixo o publicado até agora, fazendo esses outros romances parecerem coisa de idiota. Compreendo a liberdade de expressão, o clima de rebeldia e tudo o mais, mas não podemos nos prejudicar a nós mesmos. A última coisa que desejo é que, buscando novidades a qualquer preço, acabemos por comprometer uma linha editorial que até agora foi popular, moral e também rendosa. Recusar.
PROUST
EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
Trata-se, sem mais nem menos, de uma obra comprometida, talvez muito grande; mas é possível vendê-la através de uma série de livros de bolso.
Tal como está é impraticável. Falta nela um trabalho vigoroso de depuração. Toda pontuação, por exemplo, terá de sofrer uma completa revisão. Os períodos são muito cansativos e há alguns que chegam a ocupar uma página. Com um bom trabalho de revisão que os reduza a dois ou três linhas cada, com uma melhor utilização do ponto e do parágrafo, a obra teria muito a ganhar. Se o autor não concordar, o melhor será não editá-lo.
KAFKA
O PROCESSO
Não é mau esse livrinho; é policial, com momentos a Hitchcock: por exemplo, o homicídio final, passagem de público certo.
Parece, no entanto, que o autor o escreveu sob censura. Que significam essas alusões obscuras, essa falta de nomes, de pessoas, de lugares? De que crime acusam o personagem, afinal? Se esses pontos puderem ser esclarecidos, tornando a história mais concreta, a ação se tornaria mais límpida e mais certo o suspense.
Esses escritores jovens acreditam fazer "poesia", pois dizem "um homem", em vez de dizer "o senhor tal, a tal hora, em tal lugar".
Em síntese: se é possível fazer essas modificações, bem; caso contrário, devolver os originais.
JOYCE
FINNEGANS WAKE
Por favor, recomende à redação que tenha mais cuidado quando me enviar os livros. Leio inglês e me mandam um livro escrito em sei lá que diabo de idioma. Em separado, estou devolvendo o volume.
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