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sábado, 25 de julho de 2009

Palavra, a pedra fundamental



No Dia do Escritor, um olhar a um dos maiores escritores de nossa literatura.


Drummond, em boa parte de sua obra, recria a Itabira de seu passado, cantando sua cidade, retomando acontecimentos. Muitas vezes Drummond trilha um caminho que mais parece querer transformar passado em presente e à medida que, poeticamente, esse processo se configura, o poeta estabelece um vínculo cada vez mais forte com esse passado do qual não consegue (ou não quer) se “libertar”.
Não há, porém, uma descrição desse mundo, desse espaço revivido, há sim um diálogo com ele, um diálogo em que o referencial é o próprio eu. Um eu insatisfeito e repleto de desejos. Ainda que o eu seja um referencial, há nas poesias de Drummond uma extremada consciência da realidade. Entre o eu e o mundo, então, se estabelece uma relação. Nota-se nesse processo de reviver o passado e de relacionar-se com o mundo uma profunda consciência de seu interior e daquilo que lhe é exterior também. Assim se configura uma poesia ativa, que reflete sobre o mundo e, acima de tudo, reflete sobre si própria.
A inquietação expressa na atitude de compreender o mundo e de se autocompreender se mantém na tentativa de compreender a própria poesia. É como se a poesia de Drummond tivesse como objetivo uma eterna busca, busca essa que se dá independentemente da temática que a motiva. O questionamento e a busca da própria poesia conduzem a um processo de integração entre a palavra e o mundo.
A palavra e a poesia tornam-se instrumentos de luta. Surge, então, a necessidade de dominar a palavra, de fazê-la submissa, de subjugá-la. Dominar a palavra equivale a dominar o mundo. Descobrir, desvendar e desvelar a palavra é equivalente a descobrir, desvendar e desvelar o próprio universo. A palavra é um enigma que tão logo seja decifrado é capaz de decifrar também o enigma da vida, do ser, do mundo.
Drummond tem ciência de que a poesia (como consequência do uso da palavra) é conhecimento e, por isso, capaz de transformar o mundo. Tanto a poesia quanto a palavra têm o poder de libertar, de prender e, sobretudo, de transformar e daí a necessidade de dominar a palavra. “Inspiração, respiração, exercício muscular” são necessários ao fazer poético. Se a inspiração é preciso para poetar, é evidente que não é absoluta. A palavra deve ser trabalhada, lapidada, polida. Não pode ser qualquer palavra, deve ser A PALAVRA, a única, a necessária.
Ao produzir a poesia, o poeta coloca-se numa posição de enfrentamento com a palavra, pois é dela que ele deverá extrair os significados necessários.
A arquitetura do poema é um meio para chegar à concisão de sentidos, à concisão poética, à união de palavra e pensamento. A poesia não pode ser um simples reflexo do mundo, mas deve ser o próprio universo. Universo esse que deve ser limpo, sem sobras; os restos devem ser retirados para que não haja excessos que certamente comprometerão a qualidade do poema.
Assim, Drummond apresenta uma poesia enxuta cuja palavra não apenas é o foco central, mas a própria poesia. Se a escolha da palavra é árdua é porque é nela que os segredos do universo se encontram. Estabelece-se, então, uma luta entre homem e palavra na tentativa de uma união plena que nunca se efetiva. Essa tentativa de união entre homem e palavra, universo e verso se dá por uma negação à fuga da realidade. Os olhos do poeta estão atentos ao movimento do mundo, daí sua palavra ser também ativa.
Para Drummond a palavra é um mistério que deve ser desvendado. O fio que separa poesia e homem, palavra e mundo é sutil, maleável, mas ainda assim impossível de ser compreendido. Drummond foi perseguido pela busca da palavra exata.
Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
Luta com a palavra como quem busca nela significados que sabe que elas não têm. Ainda assim, a luta prossegue. O desejo de chegar à palavra ideal motiva a busca. O problema está no fato de que entre significante e significado não há uma relação perfeita. O poeta é impotente diante do poder da palavra. Elas são muitas e são fortes e poderosas, o poeta é apenas um. Por ser lúcido, o poeta sabe não ter a capacidade de encantar as palavras. Ainda que ele sinta que está prestes a seduzi-las, elas se esquivam e fogem de seu domínio.
Por maior que seja o esforço do poeta, ele encontra-se numa luta inglória, a derrota é certa, as palavras vencem o combate. Mas o poeta não desiste, continua sua tentativa, sua luta pela expressão. A luta, então, deverá continuar enquanto o poema não estiver acabado. Mas existe algum poema acabado? Não estaria todo poema de algum modo, esperando algo que nunca chega, como a pedra que espera ser transposta? Contudo, o poeta faz a sua parte, mas o poema continuará com aqueles que o lerem, e a palavra estará lá esperando ser decifrada. E para tanto é necessário a escolha da palavra exata da qual o poeta não desistirá enquanto não a encontrar.
Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz nenhum travo
de zanga ou desgosto.

Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue
Entretanto, luto.
O poeta é um lutador. Derrotado na tentativa de persuadir a palavra, luta com ela. O homem torna-se seu escravo. Ainda que haja a necessidade de o homem dominá-la, ele encontra-se sob seu domínio. Se oferece como escravo simplesmente em troca do dom de saber usá-la. As palavras, porém, são leves, flutuam, deslizam, não se entregam, o que faz com que a luta continue. É vã essa luta, posto que não há campo para a batalha além do papel, no qual a palavra pode se recusar a ser impressa. A palavra não tem carne, nem sangue, não há como feri-la. O máximo que se consegue é prosseguir o combate, a luta inglória.
A palavra, como a poesia, foge, se recusa a surgir quando chamada. Mas o poeta suplica por ela:
Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
que venha o gozo
da maior tortura.
O desafio que a palavra impele ao homem é sempre aceito, para o homem a palavra é imprescindível, do mesmo modo que o homem é imprescindível à palavra. Sem ela não é possível concretizar a tão desejada união que só ocorre no interior do poema. Onde acaba a palavra e inicia o homem? No tecer do texto, os dois se misturam. Lutar com as palavras não é apenas um enfrentamento em busca da essência da poesia é também a tentativa de expressar a relação existente entre o eu e o mundo. Relação essa que se estabelece de modo conflitivo, daí o embate e a impossibilidade da união plena.
Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
A luta corpo a corpo travada com a palavra é tão inútil quanto a caça ao vento. Tanto a palavra quanto o vento são fluidos, incapazes de serem capturados ou “domesticados”. Sem vestes, sem formas, na fluidez de sua existência a palavra resiste. A luta braçal, corpo a corpo tão conhecida do homem, é inútil nessa batalha, os músculos de nada valem se na tentativa de capturar as palavras. O esforço físico só é válido para organizá-las, não tem função para segurá-las, pois como o vento, elas se dissiparão e ao serem agarradas, não estarão mais lá. As normas da luta nesse caso não têm valor, posto que jamais conseguirá o homem reter a palavra entre seus dedos.
Iludo-me às vezes,
precinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
outra sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas, ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca,
Novamente o poeta pressente uma vitória que não se configura e que está condenada a não se configurar. A luta é desigual, posto que a palavra é quem seduz ao homem que a deseja e cada vez mais a procura, gerando assim uma busca perpétua. O domínio é da própria palavra que se torna o sujeito e o objeto do fazer poético. O que o poeta realmente deseja é “fruir de cada palavra” a sua essência e para tanto ele precisa de ensinamentos que ela nunca lhe dá.
O dia passa, a luta permanece. “O inútil duelo” não se resolverá, mas também não acabará. O poeta é um lutador e como tal continuará lutando. O dia se passa, a noite chega, e a busca pela palavra será infinda, dado que
O ciclo do dia
ora se consuma
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.
O duelo é inútil e jamais se resolverá. A busca constante, infinita e cíclica permanecerá. O desejo insatisfeito pela integração essencial homem/palavra continuará motivando a luta branca sobre o papel vazio. Essa batalha será infinita posto que se dá numa ausência de espaço, em que o adversário não se corporifica. Uma espécie de luta contra o nada, mas que é um tudo essencial. Trata-se de uma busca divina de algo que tão logo se concretiza se dissipa: o verbo. “No princípio era o verbo e ele se fez vida”, assim como no princípio era a música e ela se fez poesia e habitou entre nós.
O verbo é divino, entretanto, tão logo posto como um tijolo da construção, requer um trabalho árduo para a arquitetura do poema. Por ser divina, a palavra é o universo do qual se extrai o verso. Poesia é palavra. É o uso que se faz dela. O modo com o qual ela é empregada. Mas acima de tudo aquilo que se lê nela. Por mais que se especule sobre o que ela seja, a procura da poesia permanece.
Em “Procura da Poesia”, Drummond continua essa busca infinita cujo objetivo não será alcançado e desde o início está condenado a ficar sem resposta. O poema que se apresenta como a busca do fazer poético e mescla definições, feitas através da negação, e ensinamentos para o ato de poetar não encontra resposta do que seja poesia.
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casa.
Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
A poesia não depende de temas específicos, não requer moldes. Apenas a palavra é imprescindível à ela, pois poesia vai além do sentir e pensar. Poetizar não implica retomar acontecimentos do passado ou dar vida à cidade natal, para que haja poesia não é necessário refletir sobre o movimento das coisas ou sobre os objetos do cotidiano. Um lembrança distante é apenas uma lembrança.
O interessante nesses “mandamentos do fazer poético” que Drummond cria ao longo do poema é que tudo aquilo que ele diz que não se faz; tudo aquilo que, segundo o poema, não é poesia, é o que o próprio poeta faz. Drummond foi o cantor de Itabira, poetizou o cotidiano, a vida, o amor, as reminiscências de um passado que ainda que perdido no tempo e no espaço ficaram eternizadas em forma de poesia. A questão é que o simples tema escolhido não é poesia mas o modo com que é tratado que o é.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
A poesia não é a natureza, o homem, a chuva, a noite ou qualquer outro tema que nela se encontre. A poesia é a fusão entre esse objeto que é o tema (mas que é também a própria palavra nele fundida) e a palavra que é o sujeito. A poesia somente se configura e se concretiza quando aceita como tal. A poesia está no que se entende dela. É, portanto, necessário buscar as diversas faces das palavras encadeadas a cada verso, pois somente assim, encontrar-se-á a chave, a resposta, o entendimento mais profundo do poema. O poema, como a própria palavra, é um mistério que espera ser descoberto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de descrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Ao fazer poético não é preciso que se veja o que se dissipou. A imagem no espelho ou a memória são fluidas como a palavra e a própria poesia, mas são efêmeras e se dissipam ao vento. A palavra, tão logo concretizada em forma de poesia, permanecerá, tornando-se parte de uma unidade essencial e indissociável.
Para ser introduzido no reino das palavra, é necessário que o homem esteja acompanhado de um silêncio completo, somente assim poderá ele ouvir o que elas realmente têm a dizer, aquilo que verdadeiramente merece ser escrito. A necessidade de trabalhar a palavra é sempre reiterada por Drummond. Na arquitetura da palavra ela deve ser semeada para que possa brotar. Essa semeadura, porém, requer um árduo trabalho. O uso artificioso da linguagem é um agrupamento de palavras que nada dizem, para que digam alguma coisa, devem ser escolhidas de modo que o centro do interesse seja a própria palavra em si.
Por ser divina a palavra é vida, por ser vida a palavra é provocativa, combativa, mas também indispensável. É no seu reino que os poemas se encontram e delas são formados. As palavras se realizam nelas mesmas, como os poemas se realizam apenas em seu próprio interior. Nessa tentativa de unir palavra e objeto, há também uma tentativa de ligar poema e poesia, forma e conteúdo. Essa tentativa de condensação entre sujeito e objeto, palavra e pensamento, forma e conteúdo marca a obra de Drummond.
Se por um lado essa união entre a forma e o conteúdo elimina a transcendência, por outro, é já uma forma de transcendência em que essa fusão leva a um terceiro elemento: a própria poesia. A poesia é, então, a própria forma que assume. Entretanto, esse desejo de unir forma e conteúdo, palavra e pensamento é uma utopia que o poeta nunca consegue realizar. A tentativa de união plena é frustrada – e o poeta sempre soube que assim seria. Trata-se de uma luta em que o poeta já está derrotado desde o início, posto que, o resultado atingido nunca será o esperado.
Por essa ligação direta que se estabelece entre vocábulo e poesia, é que é preferível um poema não escrito a um que forçosamente se concretizou. Como a palavra a poesia tem o poder de falar quando necessário e de calar quando conveniente. É por esse poder de silêncio, que a poesia nunca termina, sempre há algo mais, dito ou não dito.
O silêncio a que ela conduz é uma fonte infinita de desejos. Desejos que nem sempre, ou melhor, quase sempre não se realizam. E a busca prossegue, senão mais pelo autor, pelo leitor, isso porque, como diz Proust, "sentimos muito bem que a nossa sabedoria começa onde a do autor termina, e gostaríamos que ele nos desse resposta, quando tudo que ele pode fazer é dar-nos desejos". É esse silêncio inquietante e provocativo que a poesia possui e provoca. Um silêncio fascinante que nem mesmo por ser silêncio deixa de ser palavra.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodias e conceito
elas se refugiam na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
São as palavras que devem ser contempladas, não a forma fria e congelada que só revela o exterior e não a essência. As mil faces da palavra levam as mil interpretações do poema, o que só aumenta a necessidade de que a escolha seja da palavra ideal, perfeita e exata. As faces secretas, ainda que não vistas, estão lá e chamam ao combate. Um combate pelo qual o poeta já passou anteriormente, mas agora o leitor é posto na luta. Somente o que tiver a chave poderá abrir as portas que levam ao significado secreto do poema. É como a esfinge que desafia: “decifra-me ou te devoro”.
Ainda no terreno deserto, em que melodias e conceitos não podem chegar, as palavras se escondem no escuro da noite. O sono de que estão impregnadas permite que, sem reação, sigam o rumo de um rio difícil onde continuarão desprezadas até o momento de serem descobertas. Assim, nesse estado apático, a palavra espera ser decifrada. Ser conduzida a um espaço em que significados, então, lhe sejam atribuídos. Como no curso da vida, a palavra aguarda calmamente o momento de seu nascimento, em que sujeito e objeto, palavra e pensamento serão, enfim, um só: a própria poesia.

1 comentários:

audinha disse...

amei vou voltar mais vezes

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