Não restam dúvidas de que Os Lusíadas, de Camões, e Mensagem, de Fernando Pessoa, sejam obras que se aproximam. Fortemente marcados pelo nacionalismo, é possível perceber nesses textos o caráter épico na exaltação dos feitos de um herói nacional. Entre eles, porém, há uma grande diferença: enquanto Os Lusíadas é nitidamente uma epopéia – mesmo que já não mais nos padrões clássicos –, Mensagem é um poema épico, não chegando a constituir-se como epopéia. Como poema épico, Mensagem exalta uma nação por suas conquistas, contudo, rompe com a epopéia a partir do momento que volta o olhar para o futuro. O poema pessoano, então, “narra” os fatos de um passado glorioso, trazendo já uma realidade decadente, e, sobretudo, a esperança de que Portugal volte a ser a nação gloriosa de outros tempos.
Mensagem traz em si um forte conteúdo simbólico que perpassa a obra. Os Lusíadas, por sua vez, relata os fatos sem se utilizar tanto deste artifício. Um dos símbolos mais recorrentes na poesia épica de Fernando Pessoa é, na verdade, o grande ícone de Portugal: Dom Sebastião - o próprio “encoberto”. Os Lusíadas apresenta episódios simbólicos, mas sem se utilizar tanto de símbolos especificamente. Um elemento, porém, aparece nos dois textos: o mar. O mar surge de diferentes modos na realidade dos dois textos. Em Camões, ao que parece, o mar é, em geral, apenas um espaço geográfico, próprio para a navegação; no poema pessoano, por outro lado, o mar revela-se com toda a simbologia que carrega. Assim, o mar traz consigo a vastidão dos símbolos que farão dele um elemento mais significativo do que pode parecer a primeira vista.
O mar simboliza a dinâmica da vida. O próprio mar é dinâmico, mantém-se num constante movimento. Dinâmico, o mar é também mutável, dúbio, funde a esperança de glória e o medo da frustração.
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
O mar carrega em si essa dualidade de significação: é o perigo, o abismo, mas espelha céu. Ao espelhar o céu, o mar toma para si o conjunto de sua simbologia. O mar, então, torna-se ambíguo, ao mesmo tempo que representa o perigo, representa a glória, a imortalidade, a eternidade, a plenitude, a busca do absoluto. O céu representa os poderes superiores ao homem, sendo, com isso, o fator determinante de seu destino.
Tanto em Mensagem quanto em Os Lusíadas, o mar é o portador do destino dos portugueses. A frustração ou a glória encontram-se nele, suas profundezas escondem algo que os portugueses são obrigados a desvendar. O mar torna-se o depositário dos medos e angústias, entretanto, a bravura portuguesa foi capaz de vencê-lo, dominá-lo. O mar, então, torna-se a representação de uma conquista merecida, de uma esperança que passa a ser realidade. O mar representa a transformação, no caso, de um temor que se torna glória. O mar é, portanto, um espaço de transcendência.
Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão e que pode se concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte. (CHEVALIER & GHEERBRANT)
Sendo a representação do bem e do mal, da vida e da morte, o mar pode significar a realização dos sonhos ou possuir monstros prestes a perseguir e atormentar. O mar é a maior das forças da natureza. Ao enfrentá-lo, o homem desafia a morte. Suas águas fluidas e informes representam a transição que vai do enfrentamento ao triunfo.
Em Os Lusíadas, o mar apresenta um forte aliado: Adamastor. Em seu formato bruto, o rochedo é fixo, bem determinado, porém, passível de derrota, por mais poderoso que seja. Os portugueses conseguem efetivar essa vitória sobre o tão temido Gigante – que nada mais é que a representação do Cabo das Tormentas. Entretanto, simbolicamente, Adamastor representa o limite a ser ultrapassado, a força da natureza que se ergue contra o homem, e contra a qual ele deve lutar. Para ser o “senhor dos mares”, o herói dos lusitanos deve vencer também ao Gigante. Auxiliado pelos deuses, Gama efetiva sua vitória.
Mensagem, por sua vez, apesar de reiterar constantemente o poder dos mares, também apresenta um monstro a ser derrotado: o Mostrengo. Novamente é possível perceber a aproximação entre Os Lusíadas e Mensagem. Em ambos os limites e o inimigo estão presentes fazendo com que o homem se supere a todo instante. O Mostrengo de Pessoa, contudo, parece ser mais terrível que o Gigante Adamastor. O Monstro representa, também, o limite e as forças naturais, entretanto, possui uma forma indefinida. O homem não sabe com quem luta, seu adversário é um ser alado, surgido em meio a uma escuridão, parecendo ter vindo de lugar nenhum.
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?”
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?”
O Mostrengo pode representar ainda as crendices de uma época em que o Cabo das Tormentas era visto como um dos limites do mundo. O temor que esse monstro causa nos navegantes só é superado pela convicção do bem que se está fazendo pelo povo que precisa dessa conquista.
A noite torna-se mais um dos elementos negativos da viagem. É no espaço noturno que os monstros aparecem e os perigos se desvelam. A noite é ambígua e traz em si algumas dualidades da existência, representa o sono tranquilo e a morte, os sonhos sublimes e as angústias, a ternura e o engano. A noite, então, surge como um véu sombrio que se apodera do céu dos mares por onde navegam os portugueses. Os heróis de Portugal devem vencer a noite, aguardando a chegada da manhã que trará consigo a aurora, a realização dos sonhos noturnos.
Desse modo, o mar, o céu, o monstro e a noite são símbolos que se aproximam. O mar torna-se o epicentro dessa simbologia. Frustração e glória estão presentes no espaço marítimo e precisam ser desvelados. A qual deles se chegará? Não se sabe, é preciso desafiar a ele, o mar, e, por si só, alcançar a tão desejada resposta.
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